Em 01/06/15
Aos quase 80 anos, Cesare segue influenciando gerações de educadores que acreditam na construção de um país mais justo.
“Aos 27 anos, morava em Florença, na Itália, e sonhava em ser diplomata. Num estalo, em Janeiro de 1968, aos 29 anos decidi largar a vida de burguês italiano e vim para a Amazônia, trabalhar com crianças e adolescentes. Pensava que, como diplomata, eu poderia ser útil apenas aos interesses do meu país, mas se eu me dedicasse à causa das crianças e dos adolescentes, poderia ser parte dessa mudança que eu tanto sonhava.
Em 1969, há 45 anos, em Manaus, já tinham crianças que dormiam no pátio da catedral, aquela situação me impressionou muito. Fundamos o Centro Social Nossa Senhora das Graças, no Beco do Macedo, na época uma favela da capital. Criamos uma escola profissionalizante para 400 adolescentes e uma pré-escola.
Doze anos depois, em 1981, entendi que minha contribuição estava concluída e mudei para o Rio de Janeiro para trabalhar como assessor técnico na extinta Fundação Nacional do Bem-Estar Social (Funabem). De lá fui para o Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância), e depois de três anos, em 1985, fui nomeado representante-adjunto no Brasil do Unicef, em Brasília.
Em Brasília, comecei a pensar dentro desse contexto de mudanças profundas do Brasil, a partir da redemocratização. Acreditei que aquele seria um momento histórico para implantar um projeto que fosse capaz de, ao mesmo tempo, incluir na pauta do Brasil os direitos das crianças - que estavam sendo elaborados na nova Constituição e no ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) criar um espaço onde teriam o direito de serem felizes.
Ao sair do Unicef recebi alguns convites, mas somente um apontava na direção do sonho: a Terra Nuova, uma ONG italiana de cooperação internacional me chamou para coordenar um projeto com meninos de rua em Salvador. Meu princípio inegociável era não repetir o que já se fazia no Brasil.
Queria dar a melhor educação aos mais pobres. Eu rejeitava a tese de que, para quem nada tem, qualquer coisa serve. Além disso, defendia o profissionalismo dos educadores e um sistema de formação permanente. Não queria instalar oficinas de carpintaria, corte e costura ou manicure. Queria arte e cultura a serviço da educação.
É impossível educar sem estética, sem beleza, sem arte e cultura.
Ou seja: me recusei a realizar um projeto educativo pobre para pobres. E a Terra Nuova aceitou o desafio, juntamente com o Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua, que deu um apoio fundamental do ponto de vista político e institucional para um projeto que ainda nem tinha nome. Trabalhávamos para garantir aos filhos da exclusão o direito a vida com V maiúsculo.
Uma tarde, eu estava em casa, na Praia de São Tomé de Paripe, em Salvador, e observava o pôr do sol, pensando em qual poderia ser o nome do projeto. Naquele momento, algumas crianças corriam na praia. Eram todas negras e estavam banhadas pelo sol do fim de tarde. Decidi chamar de Axé, que no Candomblé é o principio vital, a energia que move todas as coisas. O nome homenageia a cultura afro-brasileira e afirma que a criança é o axé mais precioso de uma nação.
No início fui crucificado... falar de beleza e colocar as crianças para dançar e jogar capoeira? As pessoas me diziam que eu estava doido. Que aquelas crianças só queriam encher a barriga, que estavam morrendo de fome. Ninguém se interessaria por dança, música... Aqui, na Bahia, temos a predominância dos elementos afros, dos quais o Axé se apropriou, mas a arte e a beleza são universais. Acreditamos que conseguiríamos estimulá-los por meio desses elementos e seguimos em frente.
Nos primeiros tempos do projeto, as crianças olhavam para os educadores e diziam: eu não tenho nada a perder. Elas estavam nos dizendo que não tinham sonhos nem desejos. Lembro que, em 1993, tínhamos 50 ingressos para ver um espetáculo de dança no Teatro Castro Alves. E se jogassem o teatro abaixo? Era uma dúvida. Já pensou se roncassem na plateia?
Não aconteceu nada disso. Ao final do espetáculo nos olharam e perguntaram: por que não podemos dançar também? Essa é a força da pedagogia do desejo. No Axé, os chinelos de dedo convivem com as sapatilhas.
O desejo dos meninos e meninas criou o Axé Design, a Companhia de Dança, a Orquestra de Câmara e tudo o que hoje temos aqui. Claro que, se super estimularmos, haverá frustrações no meio do caminho, mas cabe a nós, educadores, colocar um pára-quedas psicológico para que a criança chegue ao solo em segurança, num campo de realizações possíveis.
No dia-a-dia do Axé vejo que a arte e a educação são cada vez mais conjugadas – a arte é a própria educação. Eu me considero um homem que exercita essa combinação, para tentar contribuir para a transformação dos outros.
No fundo tenho convicção de que minha missão é essa mesma: tentar transformar as pessoas para que elas sejam mais felizes. É importante dizer que eu mesmo fui profundamente transformado pelas crianças. “Elas me deram essa energia fortíssima de ter a disposição de mostrar aos outros a alegria de mudar e de transformar.”
Cesare fez na abertura um Culto Ecumênico com um representante de cada religião. 